A vitória de Trump
nas eleições norte-americanas pode ser surpreendente face às sondagens e às
expectativas de muitos de nós. O que não é surpreendente, porém, é a
tendência de que ela faz parte, aliás em forte desenvolvimento na UE.
“É a xenofobia,
estúpido!”, proclamam alguns, procurando pôr de lado a hipótese de estes
fenómenos terem origem no mal-estar económico que se faz sentir nas nossas
sociedades. O que até seria plausível se a rejeição do centro se fizesse
sempre, e em toda a parte, na direcção das direitas xenófobas. Mas o certo é
que as esquerdas radicais também têm beneficiado desta tendência centrífuga,
embora em menor medida, apesar de se reverem, mais ainda que as esquerdas
centristas, em agendas politicamente correctas.
Não é a xenofobia,
estúpido, é a desigualdade e a precariedade! O “outro”, o imigrante, o
refugiado, o muçulmano, o negro são muitas vezes o alvo da ira que cresce; mas
é assim porque são visíveis e têm, como não tem “o capital” nem “as
multinacionais”, corpo e rosto. Atravessam as fronteiras e cruzam-se connosco
na rua e vivem ao nosso lado. São o rosto da globalização para quem nem sequer
conhece a palavra.
Precisamos do ponto
de vista da Economia Política crítica para perceber que as relações
interpessoais e de grupo são moldadas pela totalidade de um sistema que, sendo
por natureza sociocultural, também se transforma na dinâmica do quotidiano. Não
há economia, de um lado, e cultura do outro; não há povo ignorante, de um lado,
e estruturas económicas capitalistas do outro. A realidade social é complexa e
as explicações simplistas impedem-nos de compreender porque há milhões de
desesperançados, pobres e da classe média frustrada, que manifestam a sua raiva
através da abstenção ou pelo voto num demagogo que julgam capaz de mudar o seu
destino. O capitalismo neoliberal, financeirizado e predador, enfrenta nada
menos do que a insurreição das suas vítimas. Uma insurreição por vezes surda,
por vezes inconsciente, por vezes suicida ou depressiva, muitas vezes errada
quanto ao alvo a abater – mas não menos generalizada por isso.
Acrescentemos a
captura da democracia dos Estados Unidos por uma rede mediática de intoxicação
propagandística, de formatação das mentes e espectacularização da política.
Trump é também um produto desse sistema mediático, cada vez mais dominador,
como vemos no Brasil. A velha Europa da cultura e das “boas maneiras” corre
também o sério risco de ver a sua democracia capturada por estes poderes.
Nesta sucessão de
catástrofes, qual será a próxima? A desagregação desordenada do Euro e da União
Europeia? Uma confrontação militar no leste Europeu, ou no Oceano Pacífico? O
regresso das ditaduras sul-americanas? A África, enlouquecida de fome e guerra,
a despejar-se na Europa? Tudo isto, ou nada disto? Não sabemos. Só sabemos que
a História não chegou ao fim e que a crise continua a avolumar-se.
Não será a direita
que porá termo a esta vertigem suicida. Pelo contrário, atiçará o lume. Quanto
às esquerdas, não terão sucesso se ficarem pela reciclagem do socialismo
marxista-leninista, ou continuarem a alimentar a ilusão de uma UE progressista.
Aliás, o quadro partidário existente é incapaz de produzir uma alternativa ao
sistema; o seu governo só se mantém com uma política de “mal menor”.
Para pôr termo a
esta vertigem suicida, precisamos de uma frente mobilizadora de todos os
democratas que rejeitam as soluções neoliberais e a cosmética reformista de que
o sistema precisa para se manter. Este contra-movimento terá de dar uma
resposta, não só às vítimas do costume, mas também aos “deploráveis” que
votaram em Trump e se preparam para votar em Le Pen. Saibamos nós estar à
altura do desafio com que estamos confrontados.