domingo, 15 de janeiro de 2017

Sair do euro: a ignorância e o medo terão resposta


O autor do artigo Sair do Euro?, Pedro Braz Teixeira, é professor na Universidade Católica. O texto é pura propaganda.
Primeiro, uma negociação destinada a acabar com o euro não será mais difícil do que as negociações que terminaram com guerras. Com a vantagem de que haverá uma enorme pressão do capital financeiro para que se tomem decisões cortando a direito. O capital financeiro tem horror à incerteza prolongada. Portanto, no dia em que a França, ou a Itália, telefonar para Berlim/Bruxelas/Frankfurt a dizer que vai sair, aquilo que se vai discutir nas horas seguintes é o formato e a duração das negociações. Vai ser rápido por pressão da finança.

Segundo, talvez com a excepção da Grécia, qualquer país de média dimensão que declare uma saída unilateral do euro, previamente preparada e irrevogável, vai gerar uma instabilidade financeira e política tão grande que a Alemanha preferirá acabar com a zona euro de forma organizada. Convém lembrar que o partido alemão AfD é contra o euro e tem crescido eleitoralmente.
Por outro lado, se Portugal decidisse sair do Euro, alargaria imenso as suas quotas de mercado na indústria do calçado (por exemplo) com a desvalorização do novo escudo. Os empresários espanhóis e italianos exerceriam uma enorme pressão sobre os respectivos governos para os seus países também saírem pois iriam falir. Recordam-se de, antes de haver euro, as desvalorizações do escudo e da peseta ocorrerem uma a seguir à outra? Portanto, após o Brexit e a eleição de Trump, nada será como dantes. A acção determinada de sair do euro por parte de um país produzirá um efeito dominó. E os alemães têm consciência disso, como se vê nas entrelinhas das declarações de altos responsáveis.
Assim, o autor do artigo tece considerações irrealistas para um país que quer sair, como se tudo o mais ficasse igual ao que era até aí. Típico de economista convencional que trabalha com modelos que não incorporam a dinâmica da economia política.
Quanto às consequências da saída, o autor faz de conta que os salários só compram bens importados e constituem a totalidade dos custos da produção. Convém-lhe raciocinar assim para sugerir implicitamente que uma desvalorização do novo escudo em 30% produzirá uma quebra de poder de compra das famílias em idêntica proporção. O que é falso. Com um cabaz de bens de consumo contendo 25% de bens importados, a redução do poder de compra dos salários durante algum tempo será de 7,5% (30% x 25%). E isto será apenas por uma vez (a desvalorização não se repete todos os anos!!), acompanhado de compensações decididas pelo governo para os salários mais baixos e para as pensões. Dada a baixa taxa de ocupação da capacidade produtiva, e a natureza pontual do choque nos preços, não haverá espiral inflacionista como aconteceu nos choques petrolíferos dos anos 70 do século passado. E, como é evidente, haverá enormes ganhos de competitividade-preço com aumentos salariais da ordem dos 7,5 ou 10%, sendo o salário apenas 1/3 dos custos, e o preço tiver descido entre 20 e 30%. São desonestos os economistas que negam a eficácia das desvalorizações a curto e médio prazo. E importa perceber que, com o fim do euro, a especulação com o dólar levaria rapidamente à convocação de uma conferência internacional para encontrar novas formas de controlo dos movimentos de captais e de estabilização monetária.
Também concordo com a necessidade de um discurso realista na defesa da saída do euro. Mas para isso não precisamos de inventar custos improváveis. Por exemplo, o desemprego pode baixar muito se o novo governo tiver preparado um programa descentralizado para actividades socialmente úteis lançadas com as Comissões de Coordenação Regional, as câmaras municipais e as agências de desenvolvimento local (ver caso da Argentina). Importa lembrar que tudo isto pode ser financiado pelo Banco de Portugal que se torna o financiador do Estado. Fora do euro, os critérios de emissão monetária passarão a ser conduzidos de acordo com uma lógica keynesiana e não segundo o monetarismo que enterrou a Europa na deflação e a encaminha para os novos fascistas.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O legado de Mário Soares


Este texto do Mário Machaqueiro merece estar no blogue da DS. 

Por estes dias, o ruído mediático à volta da figura de Mário Soares vai atingir um volume insuportavelmente ensurdecedor, repleto de trivialidades e de lugares-comuns de bom-tom, daqueles que substituem qualquer arremedo de rigor analítico. Mas é bem verdade que se torna inevitável falar dele. Um dos “clichés” pretende que, depois de Oliveira Salazar, Soares terá sido o político português mais marcante do século XX. Mas, ao contrário de Salazar, cuja formatação que impôs à sociedade portuguesa foi indelével devido à concentração autocrática do poder nas suas mãos, ainda hoje estamos para saber se as marcas que Mário Soares deixou no nosso país são atribuíveis ao cunho decisivo da sua intervenção pessoal ou ao facto de se ter posicionado para estar no “lugar certo” na “hora “certa” e de se ter sabido rodear de colaboradores hábeis que aceitaram ficar na sombra para que o líder pudesse brilhar no firmamento. Ainda ignoramos, pois, se o “génio” político de Soares foi, sobretudo, da ordem do simbólico. Mas se, como dizia o outro, “em política o que parece é”, o simbolismo de Soares tornou-se, ele mesmo, matéria do real, e é isso que em última análise importa.

Tal como o seu arqui-inimigo, Álvaro Cunhal, também Mário Soares não pode ser julgado de forma expedita, linear e unilateral. O seu legado político e histórico é, no mínimo, contraditório, à medida do carácter tortuoso e complexo da personagem. A primeira coisa que convém reconhecer nele é o inconformismo. No tempo da ditadura trocou o que poderia ter sido uma carreira confortável de advogado pelas vicissitudes incertas da oposição ao salazarismo, com o seu preço de prisões, de deportações e de exílios. Em Paris a sua vida não foi propriamente dourada, ao invés do que a má-língua e a má-fé de alguns ainda hoje insiste. Num país em que a resistência a Salazar foi compromisso de uma escassíssima minoria, essa trajectória de Soares destaca-se na coluna dos “activos” da sua biografia e só pode ser motivo de reconhecimento por parte dos portugueses, sobretudo daqueles que sempre foram férteis em acusações mas que passaram o período ditatorial encostados à vidinha resignada e cabisbaixa.

Creio ser pacífico considerar que o momento político crucial da vida de Mário Soares ocorre em 1975 quando ele se opôs ao PREC. Contudo, também aí o juízo que dele possamos fazer está dependente do entendimento que tenhamos do que foi esse famoso “processo revolucionário em curso”. Estava esse processo orientado para a apropriação do aparelho de Estado por parte do Partido Comunista com vista à instauração de um regime despótico decalcado das falsas “democracias populares” da Europa de Leste e da União Soviética, como, de resto, o próprio Soares invocou na altura? Ou, pelo contrário, esse programa foi falaciosamente atribuído ao Partido Comunista, organização que, ao longo de 1974 e 1975, operou essencialmente como um travão “moderador” das reivindicações populares e da instauração de um poder verdadeiramente “popular” e “basista” que uma parte do proletariado urbano e do campesinato do sul do país parecia em condições de implantar? 

A que é que Soares efectivamente se opôs? A verdade é que foi essa a “sua hora”, mercê de uma conjuntura de Guerra Fria em que os norte-americanos, por via do papel desempenhado por Frank Carlucci, apostaram tudo em Mário Soares para contrariar uma evolução que parecia poder colocar Portugal fora da influência geopolítica dos Estados Unidos. Não foram os americanos que “inventaram” Mário Soares nem foram eles que lhe ditaram o essencial da sua estratégia, mas o apoio financeiro e logístico que então lhe forneceram – a ele, ao sector “moderado” do MFA e a uma extrema-direita católica e salazarenta que se colou então àquilo que Soares podia representar – revelou-se decisivo para ditar o desfecho de um PREC cuja inconsistência votava, para todos os efeitos, à maior das improbabilidades.

Esse foi o momento capital da vida de Soares, pois ditou tudo o que veio a seguir – incluindo a adesão à CEE. Com Mário Soares triunfou o regime da democracia liberal e parlamentar, bem como a plena inserção de Portugal na economia-mundo capitalista, inserção que reformulou e confirmou a posição secundaríssima, subordinada e periférica deste país nessa mesma economia. Soares limitou-se, nesse sentido, a cavalgar a relação de forças mundial que dificilmente destinaria a Portugal um fim diferente.

O resto é importante, mas acessório: o desmantelamento do colonialismo, no qual Soares teve um papel muito mais secundário e marginal do que os seus inimigos gostam de imaginar, o governo que trouxe a primeira intervenção do FMI, a entrada na “Europa”, a construção tíbia de uma “social-democracia” e de um Estado-Providência sempre inacabado – que, aliás, dificilmente teria chegado a emergir sem as lutas sociais de 74-75 – e, finalmente, a presidência da República cujo segundo mandato contribuiu para minar o cavaquismo político mas não o cavaquismo económico e social, que veio desgraçadamente para ficar. Também são acessórias, apesar de tudo, as inexplicadas zonas de sombra que pesam sobre a sua biografia: os negócios da China com a Emaudio, as relações com o magnata Maxwell, e as “traições” que foi somando com vários dos seus amigos, de Vasco da Gama Fernandes a Salgado Zenha, passando por Rui Mateus e terminando em Manuel Alegre. 

Uma nota final sobre a sua rivalidade com Álvaro Cunhal. Soares, graças aos auxílios que referi, triunfou duplamente sobre Cunhal e sobre o Partido Comunista. Porque praticamente nada ficou, na democracia institucional portuguesa e em boa parte do seu tecido social, daquilo que era o programa político e económico do Partido Comunista. Mas também da esquerda revolucionária em geral – e, vistas bem as coisas, talvez tenha sido esta, mais do que o PC, a verdadeira derrotada por Soares e companhia. O PCP aceitou pagar o preço da marginalização política para sobreviver e ocupar o seu lugar na democracia parlamentar e autárquica. A fim de esconjurar, porém, as suas responsabilidades próprias no desfecho do PREC, esse partido reescreveu a história da sua intervenção no período de 74-75 e, paralelamente, demonizou em absoluto a figura de Mário Soares. A segunda derrota de Cunhal e do PC em relação a Soares ocorreu em 1986, quando, depois de uma estratégia desastrada para minar a candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo – inicialmente a mais bem posicionada para ganhar as eleições e, com isso, refundar a esquerda em Portugal – acabaram por engolir o famigerado sapo do voto no seu mais odiado inimigo.