segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

O primeiro dia de uma viragem

de Mário Machaqueiro
António Costa surpreendeu-me. Palpita-me que, à esquerda, não devo ser o único. A 6 de Outubro, o meu cepticismo em relação à liderança do PS levou-me a escrever aqui as seguintes considerações: «Acossada por um péssimo desempenho eleitoral que minou a sua legitimidade política, a liderança do PS não se sente com autoridade para inviabilizar um governo do PSD/CDS. Por outro lado, o centrismo e o direitismo que dominam o aparelho do partido não são de molde a que o PS projecte, para a opinião pública, um discurso de ruptura com o “consenso” de Bruxelas que representasse claramente uma alternativa em que o BE e o PCP se pudessem reconhecer e, sobretudo, que galvanizasse os tais desiludidos que não votam. Tudo isto torna o PS a grande força de bloqueio para um projecto de esquerda que se queira consubstanciar em governo.» Enganei-me, e tenho agora de presumir que, muito provavelmente, Costa já vinha encetando com os partidos à sua esquerda, durante a campanha eleitoral, um diálogo de bastidores que desembocou no cenário político actual, já que me parece pouco crível que uma jogada tão ousada possa ter sido gizada apenas depois de conhecidos os resultados eleitorais. Isso, contudo, não é o importante. Se temos razões para não embarcar em euforias fáceis e precipitadas perante o que está a acontecer, também não devemos, creio eu, minorar ou menosprezar a dimensão política deste acordo de governação entre o PS, o BE e o PCP. Antes de mais, por aquilo que a direita mais demoniza neste momento: o facto de, em 40 anos de democracia, se ter quebrado uma “tradição” arbitrária e espúria pela qual o partido mais votado podia sempre formar governo, mesmo sem ter assegurada a maioria parlamentar. A manutenção dessa “tradição”, que na verdade desvirtuava o alcance de um regime democrático que tem o seu centro na Assembleia da República, muito contribuiu para generalizar na cabeça das pessoas uma série de chavões que foram pervertendo, ao longo dos anos, a compreensão das regras de funcionamento desse regime: chavões como o “arco da governação” ou a noção distorcida de que existem “candidatos a primeiro-ministro”. O gesto de Costa e das actuais lideranças do BE e do PCP veio repor a verdade processual da nossa democracia: o fulcro da decisão política reside na representação parlamentar. É no parlamento que se formam as maiorias e é, portanto, dele e só dele que emana a legitimidade para a constituição de um órgão executivo. E nenhuma “tradição” se pode sobrepor a esta evidência. O segundo resultado da iniciativa de António Costa no sentido de uma aproximação aos outros partidos de esquerda constitui aquilo que só pode ser designado como uma profunda reviravolta em todo o período conhecido da nossa democracia, uma ruptura que seria igualmente insensato desvalorizar: pela primeira vez, o PS abre-se aos partidos à sua esquerda para viabilizar uma solução governativa, rompendo de vez com a ideia perniciosa e antidemocrática de que existem partidos ou forças políticas “naturalmente” destinados à governação e outros que, embora integrados no regime, devem ser “naturalmente” excluídos das funções governativas. E, neste ponto, há que fazer justiça a Costa, pois há muito tempo que ele vinha criticando, nomeadamente no programa «Quadratura do Círculo», esse tipo de exclusão do PCP e do BE, considerando-a uma disfunção do nosso sistema político. Constatamos agora, com regozijo, que essas declarações não foram apenas retórica para encher os ouvidos. Estes dois resultados, há que sublinhá-lo, vão produzir efeitos muito para lá da conjuntura actual. No plano estritamente político, podemos afirmar com alguma segurança que a partir de hoje nada, de facto, será como antes. Porém, se estas mudanças são um dado adquirido, os trabalhos de Hércules de António Costa só agora vão começar. Antes de nos determos nos altos riscos que pesam sobre o acordo entre o PS, o BE e o PCP, convém, contudo, percebermos bem o fundo estratégico de onde esse acordo nasce. Pacheco Pereira tem razão quando diz que, em boa verdade, não sobrava muito espaço a esses partidos, e em especial ao PS, para actuarem de forma diferente. Se o PS tivesse viabilizado um governo do PSD/CDS, ficaria inevitavelmente refém do mesmo e submetido à chantagem da dupla Coelho/Portas, a qual não hesitaria em se auto-vitimizar e em abrir uma crise política à primeira divergência do PS, de modo a suscitar eleições antecipadas e aproveitar o clima criado para tentar o regresso a uma maioria absoluta. Num tal cenário, o PS ficaria afastado do poder por muitos e longos anos, e o mesmo sucederia, naturalmente, ao BE e ao PCP, cujo futuro previsível seria o acantonamento numa oposição inócua e desgastante. Portanto, para todos estes partidos a construção do presente acordo faz todo o sentido no plano estratégico – e até dentro de uma estratégia de longo prazo. Acontece, no entanto, que os riscos de aceder à governação no quadro actual são imensos. Antes de mais, devido à contradição estrutural entre uma política que se reclama do anti-austeritarismo mas que aceita, na prática (e, no caso do PS, também na teoria ), o essencial dos mecanismos europeus que hoje limitam drasticamente ou impedem a adopção efectiva de medidas económicas e financeiras susceptíveis de relançar o emprego, de fazer crescer a economia, de sustentar o Estado-Providência, de defender os direitos sociais e laborais contra o capital predatório, etc., etc. Esta contradição está no cerne do acordo que foi hoje assinado entre o PS, o BE e o PCP, e ela vai fazer-se sentir fortemente nos tempos que aí vêm, condicionando boa parte dos ensaios de ruptura com o passado recente que o próximo governo venha a procurar. Se a isto somarmos todos os obstáculos que os principais potentados económicos do país não deixarão de colocar ao governo do PS, em conjunção com a permanente campanha de intoxicação da opinião pública que a direita irá exercer através de uma comunicação social inteiramente dominada por ela, percebemos bem os inúmeros perigos e alçapões com que esse governo se vai defrontar. Há, todavia, outros factores que poderão contribuir para que esta aposta não esteja necessariamente condenada ao desastre. Na sua inserção internacional, o PS não é o Syriza. Pertence a uma família política que, na Europa de hoje, está, porventura, em vias de sofrer um processo de transformação cujos primeiros sinais se começam a fazer sentir – uma família política cujo apoio, de resto, António Costa sondou antes de encetar o processo que agora protagonizou. É provável que a social-democracia europeia esteja em vésperas de ensaiar um regresso, ainda que muito tímido, a algumas das suas raízes, sob pena de soçobrar por completo e de ser ultrapassada, à esquerda e à direita, por franjas muito mais radicais. Talvez estejamos a assistir aos primeiros passos para uma mudança no centro político da Europa que comece a retirar hegemonia ao Partido Popular Europeu, e, se esta previsão não for propriamente delirante, o que daí resultar terá consequências benéficas para a sobrevivência do projecto subjacente ao acordo que PS, BE e PCP assinaram. Uma coisa é, pelo menos certa: as placas tectónicas da política voltaram a mexer-se, com efeitos que ninguém soube prever, e a palavra esperança volta a fazer sentido.

4 comentários:

  1. Estou inteiramente de acordo com este artigo do Mário Machaqueiro. Tal como ele, não acreditei na solução encontrada. Mas continuo céptico porque o sistema financeiro global continua desregulado. Nos EUA a resistência deste sistema à reintrodução da lei Glass-Steagall continua feroz por parte do sistema financeiro norte-americano. A própria Hilary Clinton, enquanto provável nomeada pelo Partido Democrático a candidata a presidente, e pressionada por esse sistema continua a não se comprometer com essa regulação premente. Aliás, continua a defender a lei Dodd-Frank em vigor, o que é o mesmo que dizer que está sequestrada pelos interesses desse sistema financeiro. A UE, apesar de algumas tentativas tímidas de controlar esse sistema, mantém a situação fora do controle. Os testes de stress aos bancos estão longe de denunciar a situação de pré-bancarrota de muitos bancos na Europa. O caso do BES/Novo Banco e agora o caso da resolução do Banif, novamente com a criação de um "banco bom" a integrar na CGD de um "banco mau" falido, são exemplos locais de uma situação largamente generalizada. Digo isto para perguntar se o PS, quando a situação inevitavelmente se agravar, estará disposto a tomar as medidas indispensáveis para proteger este país e o seu povo? Espero que os partidos à esquerda do PS que suportam este governo PS coloquem estas questões. Na tertúlia organizada pelo Le Monde Diplomatique este sábado, a Mariana Mortágua que representava o BE falou claramente dessa crise financeira que aí vem, o António Filipe em representação do PCP chamou a atenção para o que esta UE no fundo é, ou seja, uma estrutura que defende uma visão capitalista e neo-liberal da economia. A resposta do João Galamba, que representava o PS foi a que eu esperava, onde não faltou uma crítica explícita às posições do Prof. João Ferreira do Amaral quanto à inevitabilidade da nossa saída do euro, ou seja, da UEM. Disse que era incoerente quando defendia que a nossa saída do euro deveria ser financiada por esse mesmo euro. Defendeu que temos de pugnar por uma alteração da política económica europeia, ou seja, que temos de lutar contra o poder que actualmente o PPE detém na UE, o que impõe que seja necessariamente uma posição concertada com outros países europeus. Já disse que esta atitude manifesta um certo neo-trotskismo, ou seja, que a mudança terá de ser global. Discordo porque não é seguramente numa estrutura política eminentemente não democrática, como o é esta UE pós-tratados de Maastricht e de Lisboa, que a situação se poderá resolver. É um sistema financeiro desregulado e em crise eminente que domina nos corredores do poder desta UE. Não podemos ser ingénuos acreditando que seremos capazes de convencer um poder não democrático a abdicar desse mesmo poder. Parece que este PS ainda não se consciencializou disso. Continuo, portanto, céptico.

    ResponderEliminar
  2. É por isso tudo que acho que talvez mereça a pena aderir ao PS e procurar criar, no seu seio, uma tendência de esquerda a sério que faça no interior do partido o que o BE e o PCP fizeram do exterior, que foi empurrar o PS para a esquerda. Talvez assim o PS nunca mais se confundisse com o PSD e pudesse vir a ser aquilo de que precisamos: um grande partido de esquerda com dimensão para governar e com valores que legitimem essa governação.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Seria, no mínimo, estranho esperar que uma viragem à esquerda do PS significasse poder romper com o tipo de poder que está instalado na Europa, não esqueçamos que o PS é defensor acérrimo dos (des)valores desta politica europeia, esperar ver o PS contrapor-se aos desmandes da UE e da Zona Euro seria como ouvir o PCP condenar as politicas da Coreia do Norte ... Impossível.
      O PS está e continuará preso à sua história, não tem amplitude ideológica para assumir-se como bastião de uma verdadeira esquerda.
      Poderemos olhar para o PS dos ângulos que quisermos e veremos sempre que a sua zona politica que mais o conforta é ao centro do nosso espectro politico, isso é o que está na sua génese, é a posição que lhe confere a maleabilidade necessária a poder jogar entre a esquerda e a direita, basta olhar para o seu passado, o PS nunca exerceu os seus mandatos ou as suas politicas de outra forma, procurou sempre não se aproximar muito da esquerda e nunca teve problemas em se aliar à direita.
      Assim, fica sempre aquela questão por responder, onde pára a esquerda progressista? quem poderá, em consciência, afirmar que essa esquerda está no BE ou no PCP??

      Eliminar
    2. Um partido com a dimensão para poder ser governo tem de ser heterogéneo, não pode ser ideologicamente monolítico. Querer que o PS seja ideologicamente homogéneo seria querer que ele tivesse o tamanho do BE ou do PCP, o que significaria que não poderia ser governo. O PS terá sempre no seu seio gente que nós só dificilmente consideraríamos de esquerda. Mas isso não é grave se quem o dirigir for realmente de esquerda e implementar políticas de esquerda. É claro que isso só seria possível com muita vaselina para não afugentar as almas mais tímidas. Mas é possível. A alternativa é ficarmos eternamente de fora, a brincar aos micropartidos e a olhar para os outros a governarem mal...

      Eliminar