terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Tradução de um excerto do livro de Philip Roderick, “The Eurozone: A History of a Strange Collective Delusion”, editado pela New Verso em 2057

«Entre 2008 e 2017, a Europa tornara-se um continente bizarro, que hoje, decorridos quarenta anos, desafia a nossa compreensão. Uma das coisas mais estranhas e perversas da chamada Zona Euro – e a estranheza é tanto maior quanto maior foi a passividade com que os cidadãos europeus consentiram neste modelo – tem que ver com o modo como a moeda única foi desenhada para retirar soberania aos povos e para reduzir drasticamente a democraticidade nos processos de decisão política. O caso de Portugal fornece um bom exemplo. No início de 2016, os portugueses dispunham de um novo governo liderado pelo primeiro-ministro António Costa, secretário-geral do Partido Socialista (PS) – um dos vários partidos sociais-democratas que então existiam na Europa – que, apesar de ter ficado atrás da coligação dos partidos de direita nas eleições anteriores, conseguiu formar governo com o apoio dos partidos à sua esquerda (o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP), um dos raros partidos dessa área política que continuavam a obter resultados eleitorais significativos). O acordo que o PS firmou com o BE e o PCP para viabilizar a formação do governo visava uma redução gradual das medidas de austeridade que a “troika” havia imposto no seu programa de reconfiguração social, económica e financeira, sob pretexto do empréstimo a que Portugal tinha sido forçado na sequência da mega-crise do sector financeiro norte-americano e europeu em 2008. O PS pretendia reescrever como provisória ou transitória boa parte dessas medidas de austeridade – entre as quais a redução salarial de funcionários públicos e os cortes nas pensões – ao passo que as autoridades de Bruxelas, com a cumplicidade dos partidos de direita que haviam governado Portugal durante a intervenção da “troika”, interpretavam essas medidas como “estruturais” e, portanto, como definitivas e irreversíveis. Dado que o desenho do euro tinha conferido a instâncias não eleitas – nomeadamente a Comissão Europeia – a supervisão e a aprovação prévia dos orçamentos gerais dos Estados da Zona Euro, antes de os mesmos serem sequer submetidos aos parlamentos dos respectivos países, o governo de António Costa foi, em Fevereiro de 2016, confrontado com a recusa liminar da Comissão Europeia em aceitar um orçamento de Estado que procurava inverter, ainda que timidamente, as medidas de empobrecimento estrutural das classes trabalhadoras portuguesas. Convém realçar que esses supervisores eram, invariavelmente, burocratas alheios das realidades e dos problemas específicos de cada povo e de cada Estado, empenhados apenas em aplicar uma cartilha ideológica cujo conteúdo económico-financeiro era sistematicamente invalidado pelas evidências empíricas que a experiência da recessão e da depressão económica não cessava de mostrar.
A ideologia que, por essa altura, comandava a burocracia de Bruxelas entendia que toda a crise do sector financeiro tinha de ser suportada pela depauperação da massa salarial, em consequência da imposição de serem os Estados a pagar os buracos financeiros criados pelos demandos de uma banca inteiramente desregulada. Ora, o mais chocante, para um historiador que hoje se debruce sobre este assunto, era verificar como tudo na zona euro estava blindado para retirar a governos democraticamente eleitos qualquer autonomia na política orçamental. Sem essa autonomia, não só a soberania nacional se via diminuída, quase anulada, mas também a democracia e a própria possibilidade da decisão política enquanto tal, pois tudo isso o Estado português aceitara transferir para Bruxelas. De facto, nenhuma política seria possível, no quadro da Zona Euro, que não se coadunasse com a orientação conservadora, inteiramente favorável aos grandes interesses financeiros, que se apropriara das instâncias de poder na União Europeia, por via da hegemonia dos partidos reunidos debaixo do designado “Partido Popular Europeu”. Tal como sucedera com as veleidades do Syriza, tratava-se agora de esmagar as pretensões, que António Costa começara por proclamar, de conciliar uma política diferente e alternativa com as regras decorrentes do funcionamento da moeda única. O objectivo parecia ser o de humilhar qualquer país ou governo – especialmente na designada “periferia” da União Europeia – que ousasse beliscar o consenso neoliberal que dominava os corredores de Bruxelas. Não admira que, em Portugal e noutros países, se começassem a multiplicar as vozes defensoras do abandono do euro e da ruptura com as suas regras.»

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