«Entre 2008 e
2017, a Europa tornara-se um continente bizarro, que hoje, decorridos quarenta
anos, desafia a nossa compreensão. Uma das coisas mais estranhas e perversas da
chamada Zona Euro – e a estranheza é tanto maior quanto maior foi a passividade
com que os cidadãos europeus consentiram neste modelo – tem que ver com o modo
como a moeda única foi desenhada para retirar soberania aos povos e para
reduzir drasticamente a democraticidade nos processos de decisão política. O
caso de Portugal fornece um bom exemplo. No início de 2016, os portugueses
dispunham de um novo governo liderado pelo primeiro-ministro António Costa,
secretário-geral do Partido Socialista (PS) – um dos vários partidos
sociais-democratas que então existiam na Europa – que, apesar de ter ficado
atrás da coligação dos partidos de direita nas eleições anteriores, conseguiu
formar governo com o apoio dos partidos à sua esquerda (o Bloco de Esquerda
(BE) e o Partido Comunista Português (PCP), um dos raros partidos dessa área
política que continuavam a obter resultados eleitorais significativos). O
acordo que o PS firmou com o BE e o PCP para viabilizar a formação do governo
visava uma redução gradual das medidas de austeridade que a “troika” havia
imposto no seu programa de reconfiguração social, económica e financeira, sob
pretexto do empréstimo a que Portugal tinha sido forçado na sequência da
mega-crise do sector financeiro norte-americano e europeu em 2008. O PS
pretendia reescrever como provisória ou transitória boa parte dessas medidas de
austeridade – entre as quais a redução salarial de funcionários públicos e os
cortes nas pensões – ao passo que as autoridades de Bruxelas, com a
cumplicidade dos partidos de direita que haviam governado Portugal durante a
intervenção da “troika”, interpretavam essas medidas como “estruturais” e,
portanto, como definitivas e irreversíveis. Dado que o desenho do euro tinha
conferido a instâncias não eleitas – nomeadamente a Comissão Europeia – a
supervisão e a aprovação prévia dos orçamentos gerais dos Estados da Zona Euro,
antes de os mesmos serem sequer submetidos aos parlamentos dos respectivos
países, o governo de António Costa foi, em Fevereiro de 2016, confrontado com a
recusa liminar da Comissão Europeia em aceitar um orçamento de Estado que
procurava inverter, ainda que timidamente, as medidas de empobrecimento
estrutural das classes trabalhadoras portuguesas. Convém realçar que esses
supervisores eram, invariavelmente, burocratas alheios das realidades e dos
problemas específicos de cada povo e de cada Estado, empenhados apenas em
aplicar uma cartilha ideológica cujo conteúdo económico-financeiro era
sistematicamente invalidado pelas evidências empíricas que a experiência da
recessão e da depressão económica não cessava de mostrar.
A ideologia que,
por essa altura, comandava a burocracia de Bruxelas entendia que toda a crise do
sector financeiro tinha de ser suportada pela depauperação da massa salarial,
em consequência da imposição de serem os Estados a pagar os buracos financeiros
criados pelos demandos de uma banca inteiramente desregulada. Ora, o mais
chocante, para um historiador que hoje se debruce sobre este assunto, era
verificar como tudo na zona euro estava blindado para retirar a governos
democraticamente eleitos qualquer autonomia na política orçamental. Sem essa
autonomia, não só a soberania nacional se via diminuída, quase anulada, mas
também a democracia e a própria possibilidade da decisão política enquanto tal,
pois tudo isso o Estado português aceitara transferir para Bruxelas. De facto,
nenhuma política seria possível, no quadro da Zona Euro, que não se coadunasse
com a orientação conservadora, inteiramente favorável aos grandes interesses
financeiros, que se apropriara das instâncias de poder na União Europeia, por
via da hegemonia dos partidos reunidos debaixo do designado “Partido Popular
Europeu”. Tal como sucedera com as veleidades do Syriza, tratava-se agora de
esmagar as pretensões, que António Costa começara por proclamar, de conciliar
uma política diferente e alternativa com as regras decorrentes do funcionamento
da moeda única. O objectivo parecia ser o de humilhar qualquer país ou governo –
especialmente na designada “periferia” da União Europeia – que ousasse beliscar
o consenso neoliberal que dominava os corredores de Bruxelas. Não admira que,
em Portugal e noutros países, se começassem a multiplicar as vozes defensoras
do abandono do euro e da ruptura com as suas regras.»
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